Nada, absolutamente nada pode justificar a
interceptação de telefonemas e a invasão da correspondência reservada dos
Presidentes da República de países amigos, ferindo a sua soberania e
desrespeitando os princípios mais elementares da legalidade internacional. E é
mais grave ainda que importantes autoridades norte-americanas tenham querido
legitimar tal agressão com o argumento de que os EUA estariam “protegendo” os
interesses dos nossos países.
À medida que a verdade dos fatos vai sendo
revelada, fica evidente que, no caso brasileiro, além da Presidente Dilma
Rousseff, a Petrobrás, nossa empresa petrolífera, também foi espionada pela
NSA, o que desmente as alegadas – e já por si inaceitáveis – razões de
segurança.
A inadmissível ingerência nos assuntos internos do
Brasil e as falsas razões alegadas provocaram a indignação da sociedade e do
governo brasileiros. A Presidente Dilma Rousseff já questionou diretamente o
Presidente Barack Obama sobre o problema e aguarda uma resposta convincente, à
altura de sua gravidade.
O governo brasileiro está tratando o caso com a
maturidade e o sentido de responsabilidade que caracterizam a Presidente Dilma
Rousseff e a nossa diplomacia – mas é impossível subestimar o impacto que ele
pode ter, se não for adequadamente resolvido, para as relações Brasil-EUA.
Basta imaginar o escândalo e a comoção que
aconteceriam nos Estados Unidos se algum país amigo interceptasse ilegalmente,
sob qualquer pretexto, os telefonemas e a correspondência reservada de seu
Presidente.
O que leva um país como os EUA, tão justamente
ciosos de sua democracia e de sua legalidade internas, a afrontarem a
democracia e a legalidade dos outros? O que faz pensar às autoridades
norte-americanas que elas podem e principalmente devem agir de modo tão
insensato contra um país amigo? O que as faz acreditar que não existe nenhum
inconveniente moral ou político em desrespeitar o Chefe de Estado, as
instituições e as empresas do Brasil ou de qualquer outro país democrático?
E o mais inexplicável é que essa flagrante ofensa à
soberania e à democracia brasileiras acontece num contexto de excelentes
relações bilaterais. O Brasil, historicamente, sempre valorizou as suas
relações com os Estados Unidos. Nos últimos dez anos, trabalhamos ativamente, e
com bons resultados, para ampliar ainda mais a interação econômica e política
do Brasil com os EUA. Mantivemos ótimo diálogo institucional e pessoal
com os seus governantes. Apostamos em uma parceria de fato estratégica entre os
dois países, baseada em interesses comuns, sem prejuízo do nosso esforço pela
integração da América Latina e de um maior intercambio com a África, a Europa e
a Ásia.
Para isso, não hesitamos em enfrentar a
desconfiança e o ceticismo de amplos setores da opinião pública brasileira,
ainda traumatizados pela participação direta do governo norte-americano no
golpe de Estado de 1964 e o seu permanente apoio à ditadura militar (como, de
resto, a outras ditaduras militares do continente). Nunca duvidamos de que
aprofundar o diálogo e fortalecer os laços econômicos e diplomáticos com os
Estados Unidos fosse a melhor maneira de ajudá-los a superarem aquela página
sombria das relações interamericanas, e a sua política de ingerência
autoritária e antipopular na região.
No episódio atual, se ambos os países querem preservar
o muito que as nossas relações bilaterais avançaram nas décadas recentes, cabe
uma explicação crível e o necessário pedido de desculpas dos EUA. Mais do que
isso: impõe-se a sua decidida mudança de atitude, pondo fim a tais práticas
abusivas.
Os EUA devem compreender que a desejável parceria
estratégica entre os dois países não pode assentar-se na atitude conspirativa
de uma das partes. Condutas ilegais e desrespeitosas certamente não contribuem
para construir uma confiança duradoura entre os nossos povos e os nossos
governos.
Um episódio como esse, por outro lado, demonstra o
esgotamento da atual governança mundial, cujas instituições, regras e decisões
são frequentemente atropeladas por países que muitas vezes confundem seus
interesses particulares com os interesses de toda a comunidade internacional.
Demonstra que é mais urgente do que nunca superar o unilateralismo, seja ele
dos EUA ou de qualquer outro país, e criar verdadeiras instituições
multilaterais, capazes de conduzir o planeta com base nos preceitos do Direito
Internacional e não na lei dos mais fortes.
O mundo de hoje, como ninguém ignora, é muito
diferente daquele que emergiu da 2ª Guerra Mundial. Além da descolonização
africana e asiática, diversos países do sul se modernizaram e industrializaram,
conquistando importantes progressos sociais, culturais e tecnológicos. Com
isso, adquiriam um peso muito superior no cenário mundial. Hoje, os países que
não fazem parte do G-8 representam nada menos que 70% da população e 60% da
economia do mundo. Mas a ordem política global continua tão monopolizada e
restritiva quanto no inicio da guerra fria. A maioria dos países do mundo está
excluída dos verdadeiros espaços de decisão. É injustificável, por exemplo, que
a África e a América Latina não tenham nenhum membro permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Ou que a Índia esteja fora dele. A governança
global precisa refletir o mundo contemporâneo. O Conselho de Segurança só será
plenamente legítimo e democrático – e acatado por todos – quando as várias
regiões do mundo participarem dele, e os seus membros não defenderem apenas os
próprios interesses geopolíticos e econômicos, mas representarem efetivamente o
anseio de todos os povos pela paz, a democracia e o desenvolvimento.
Esse episódio e outros semelhantes apontam também
para uma questão crucial: a necessidade de uma governança democrática para a
internet, de modo que ela seja cada vez mais um terreno de liberdade,
criatividade e cooperação – e não de espionagem.
* Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do
Brasil